A notória criatividade do brasileiro no uso e abuso das letras h, k, w, y, duplicações consonantais e intercalação do apóstrofo injustificado na escrita de nomes próprios e comerciais pode revelar um intrínseco saudosismo pela antiga escrita etimológica.
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Aviso anterior à Reforma Ortográfica de 1911, Igreja do Carmo, em Porto - Portugal. |
Muitos desconhecem, mas, até pouco tempo atrás, antes da Reforma Ortográfica de 1931, a até então versão corrente da língua portuguesa no Brasil baseava-se num sistema de escrita etimológica, isto é, procurava-se justificar a grafia das palavras através de suas antecedentes originais, em sua maioria, latinas e gregas.
Assim, por exemplo, eram abundantes grafias com ch (com som de k), ph, rh, th e y nas palavras de origem grega (como em archaico, phrase, rhetorica, theatro e estylo, ao invés das atuais arcaico, frase, retórica, teatro e estilo) e ct, gm, gn, mn e mpt nas palavras de origem latina (como em aucthor, fructo, phleugma, assignatura, damno e prompto, ao invés das atuais autor, fruto, fleuma, dano e pronto), não faltando, também, as falsas etimologias, como a de tesoura escrita thesoura, por sugestão de thesaurus, quando o étimo é tonsoria.
Muito embora fosse largamente defendida por muitos escritores da época, que viam nesse sistema a matéria-prima para o que chamavam de a arte de escrever, causava também muitos sentimentos de oposição em outros tantos, uma vez que para eles a escrita etimológica tornava sua grafia dificultosa e duvidosa.
Emergiram, então, movimentos em prol da transformação do português numa língua com um sistema de escrita mais simples, regular e próximo do fonético, isto é, algo em que a maioria das letras representasse poucas variações de som respectivamente. E foi o que aconteceu, primeiro em Portugal, em 01 de setembro de 1911, e depois no Brasil, em 1930, através de um acordo preliminar de adoção.
Essa mudança tão drástica em nossa ortografia não passou impune, houve grande resistência por parte de muitos linguistas e escritores que viam no estabelecimento do novo sistema uma quebra no elo entre os praticantes da língua portuguesa e os escritos deixados pelos seus antepassados. Outras pessoas resistiram à mudança, seja por receio de não saberem escrever pelas novas regras, seja por elo emocional ou intelectual à memória gráfica da escrita.
Nas palavras de Teixeira de Pascoaes: "Na palavra lagryma, (...) a forma da y é lacrymal; estabelece (...) a harmonia entre a sua expressão graphica ou plastica e a sua expressão psychologica; substituindo-lhe o y pelo i é offender as regras da Esthetica. Na palavra abysmo, é a forma do y que lhe dá profundidade, escuridão, mysterio... Escrevel-a com i latino é fechar a boca do abysmo, é transformal-o numa superficie banal."
Mas não teve jeito, os imperativos estatais foram mais forte que a vontade do povo, que, por sinal, era em sua maioria analfabeto; um dos motivos justificados pelas academias reguladoras para o estabelecimento das reformas, tornar mais fácil a educação da população. Hoje em dia, a maioria das pessoas se recorda desse período anterior a reforma de 1931 no Brasil como "a época em que farmácia se escrevia com ph".
É curioso notar que em outros idiomas como o inglês e o francês, por exemplo, já emergiram propostas e tentativas de simplificação de seus sistemas de escrita em detrimento ao etimológico, mas que por ventura, por força da resistência e rebeldia do povo, nunca foram levadas à cabo. Uma marcante diferença de postura entre nós e eles, justificada pelo baixo nível educacional que nos acompanhava quando quando essas reformas nos foram impostas.
Aliás, vale a pena salientar que no inglês não existe nenhuma agência reguladora do idioma, como a Academia Brasileira de Letras no Brasil. O inglês é patrimônio do povo e não do estado. Tanto que nos Estados Unidos não existe um idioma oficial em sua constituição, o inglês é língua de uso oficial por fato. Como a maioria das pessoas no país fala inglês, então ele é usado nos meios oficiais.
Acredito que a forma peculiar com a qual os brasileiros compõem nomes próprios e de marcas comerciais revela um sentimento órfão em relação à ortografia etimológica. Algo que vai além de modismo e da influência anglicista em nossa língua. Algo que nos foi tomado forçosamente sem o menor direito de escolha. Sem haver nem mesmo um referendo para excluir qualquer dúvida sobre nosso desejo e vontade da permanência ou não do antigo sistema.
Sem querer desmerecer as praticidades da ortografia foneticista e seu amplo poder de difusão, mas acho que não se deveria ter descartado o sistema antigo. Poderiam ter se mantido os dois, sendo o primeiro utilizado nos documentos oficiais pelo estado e como alternativa ao segundo nas mais diversas aplicações. Ou, pelo menos, se manter o segundo na literatura, mas acho que agora é tarde... É quase impossível voltar atrás.
Vejam a belleza exhuberante de algumas palavras d'aquela epocha:
acção (ainda vigente em Portugal), actividade, acto (ainda vigente em Portugal), adeante, alphabeto, alumno, anecdota, anno, anonymo, appellido, apprehender, architectura, assucar, athletismo, athmosphera, augmentar, atraz, baptismo (ainda vigente em Portugal), belleza, bibliotheca, bocca, cahir, catholicismo, civilisação, chimica, chlorophylla, christão, collecção, colonisação, columna comprehensão, commercio, communicação, comtudo, concepção (ainda vigente em Portugal), craneo, creação, creança, dansa, deos, dicção (ainda vigente em Portugal), diccionário, differente, difficil, diphthongo, direcção (ainda vigente em Portugal), ecclesiastico, edade, egreja, electricidade (ainda vigente em Portugal), elle/ella, epocha, escripta, escriptor, escriptório, escriptura, esphera, estadoal, exgottar, exhibição, exhuberante, expectaculo, falla, fructa, geographia, grammatica, guarany, gymnasio, hespanhol, hydraulico, hydrographia, hygiene, ichthyologia, idea, insecto, immovel, indemne, instrucção, introducção, lyrio, lucta, keratose, kilometro, martyr, mathematica, melancholia, methodo, monarchia, mez, objecto, occasião, officio, ophthalmologia, orthodoxia, orthographia, oxygenio, pae, paiz, pateo, patriarchalismo, phantasia, phantasma, pharmacia, phenomeno, philanthropia, philarmonica, philosophia, phorma, phosphoro, photographia, phrase, phthysica, physica, portuguez, producto, prognathismo, prohibição, propheta, psalmo, psycologia, redacção (ainda vigente em Portugal), rheumatismo, sacco, sahida, scena, sciencia, signal, successo, systema, technico, telegrapho, telephone, theatro, theoria, theologia, thesouro, thorax, triumpho, tupy, tyrannia, typo, typographia, victoria, orfana
— Com informações de: Wikipédia, a enciclopédia livre: Ortografia da língua portuguesa e Reforma Ortográfica de 1911.
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